quarta-feira, 5 de julho de 2017

O Despertar dos Mortos (1978) - Crítica

AVISO DE PERIGO: essa crítica é detalhada e contém SPOILERS, portanto se ainda não conferiu o filme, leia por risco próprio.
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Após o sucesso revigorante de A Noite dos Mortos-Vivos (1968), o diretor George A. Romero demorou nada menos que 10 longos anos para fazer uma sequência. A justificativa fica evidente ao assistir Dawn of the Dead (1978), que aqui ficou conhecido como Zombie – O Despertar dos Mortos, ou somente Despertar dos Mortos. Para muita gente, é o melhor filme de Romero, muito pelas ácidas críticas sociais que o cineasta deixou registrado. Diferente do capítulo anterior, agora a projeção foi lançada em cores e com um clima bem descontraído, mas ainda mantendo a brutalidade absurda que deixa qualquer pessoa chocada. O enredo é agitado e frenético, mesmo com mais de 2 horas de duração, o filme consegue entreter e fazer o tempo passar voando. Com certeza é um ótimo entretenimento para as madrugadas de loucura.

Quando ficou sabendo que Romero iria fazer uma continuação de A Noite dos Mortos-Vivos, o diretor italiano Dario Argento (outro mestre dos zumbis), resolveu se envolver, motivando as habilidades da produção. Despertar dos Mortos cumpre tudo o que uma boa sequência precisa, expande totalmente o universo visto no filme anterior, comentários ácidos, consumismo e capitalismo reinando em um mundo aos pedaços, e ainda é extremamente violento e caprichado no gore. Mesmo existindo centenas de produções sobre zumbis e epidemias generalizadas, esse filme consegue permanecer como ponto de referência a respeito de violência, canibalismo e mensagens sociais.

Peter e Roger, a dupla dinâmica.

Diferente do último capítulo, a produção de Dawn of the Dead contava com recursos aprimorados, mais orçamento e uma equipe exemplar, incluindo o mestre dos efeitos especiais Tom Savini (que em 1990 lançou o ótimo remake de A Noite dos Mortos-Vivos). No enredo, acompanhamos um grupo de sobreviventes que usam um enorme shopping Center como refugiu após ficarem com pouca gasolina no helicóptero, mas acabam precisando lutar pelas suas vidas durante as invasões. O grupo é composto pela dupla Peter (Ken Foree, de O Dentista, 1996) e Roger (Scott Reiniger), apresentados como dois policias carismáticos que se envolvem no apocalipse com frieza. Temos também o casal Stephen (David Emge) e sua esposa Francine (Gaylen Ross), grávida de 4 meses, e com um relacionamento dependente. O grupo acaba se juntando por acaso, e fogem de helicóptero para procurar algum abrigo seguro.

O filme basicamente começa mostrando a queda da mídia (da televisão), ao acompanharmos um dos últimos programas jornalísticos sendo exibido repleto de confusões. Um homem é entrevistado no estúdio tumultuado, tentando alertar os telespectadores do apocalipse zumbi que se espalha no planeta. A cena já transparece o caos que a humanidade vem rumando, a ética precisando ser derrubada para o bem de todos. O entrevistado implora para que a situação seja tratada com frieza, quem morreu recentemente não pode ter o conforto duvidoso de um velório, precisa ser queimado imediatamente. Independente da moralidade construída durante séculos, os humanos precisão ser frios e destruir os corpos para evitar o alastre da epidemia.

As frases de efeito também são outro ponto forte e frequente: no pôster original, temos a clássica “Quando não houver mais espaço no inferno, os mortos caminharão sobre a Terra”, que também é profetizada pelo policial Peter em um momento da trama. Já durante o filme, ouvimos inúmeras outras, como “Quando os mortos se levantam, senhores, devemos parar a matança ou perderemos a guerra”, em um discurso entre um padre e a polícia, logo após uma chacina acontecer acidentalmente. Em outro momento bastante interessante, ao invadirem o shopping e encontrarem uma legião de zumbis vagando naturalmente pelos corredores, ouvimos Francine perguntando “O que eles vêm fazer aqui?”, “Deve ser o instinto”, Stephen responde.

O amanhecer dos mortos.

Em certa cena, os policiais encontram um grupo de zumbis refugiados em um bloco de apartamentos, todos se alimentando de carne humana. Não se trata desses zumbis recentes que foram padronizados (deteriorados e em estado de decomposição), aqui são pessoas em ótimo estado, exceto pela aparência extremamente pálida e hipnotizante. É como se fosse um grupo de usuários de crack se deliciando com sua prática, nesse caso o canibalismo. Com um drama efetivo da produção, Peter entra e arrebenta a cabeça de cada um com seu revólver, porém cada disparo lhe causa dor profunda, pois em sua consciência está matando um ser humano, e não um zumbi sem sentimentos. A humanidade ainda não havia entendido a dimensão do apocalipse que se arrastava. No fundo, eles ainda tinham esperança.

Tudo isso dura pouco tempo.Um pouco mais adiante, prestes ao ser atacado por duas crianças contaminadas, Peter não hesita em fuzilá-las sem piedade, em uma cena impactante que prova a ousadia de Romero desde os anos 70. É preciso coragem do cineasta para mostrar crianças sendo fuziladas na tela. A partir desse momento, Peter não hesita mais em explodir cabeças alheias, e se torna o verdadeiro herói do filme. Os personagens são bem construídos durante o enredo, cada um com sua subtrama dramática ou motivadora.

Canibalismo explícito.

Sem combustível, eles acabam pousando em um shopping Center para procurar refúgio, local onde passaremos quase o filme inteiro. Sem dúvidas, o charme do filme é alfinetar sutilmente o consumismo desenfreado que a sociedade pratica. A ideia do shopping como palco da história é brilhante, um “paraíso das compras” enorme e supostamente protegido. O grupo faz a festa no local, desde “compras” até brincar com os utensílios das lojas de esporte, como golfe e basquete, ou então jogar os clássicos fliperamas no salão de jogos. Eles têm acesso a tudo com muita facilidade: roupas, armas, lazer, bebidas alcoólicas, dinheiro para apostar em jogos, televisões, rádios e muita comida. O grupo está em uma situação desconhecida, e precisam de mantimentos por tempo indeterminado, mas o ato de desejo ao retirar os produtos alimentícios da prateleira das lojas (e a caixa registradora aumentar os valores das compras) demonstra completamente a mensagem que Romero tentou passar. O consumismo nunca morre, ele está na essência do homem. Para vocês terem uma noção, os soldados “atacam” logo o caviar para se alimentarem no shopping, enquanto tentar achar frequência pelo rádio. Mesmo com o caos global generalizado, parece que o homem – fruto de uma sociedade capitalista – ainda precisa do luxo de ostentar e desejar.

Um tiro de escopeta nunca foi tão lindo.

O enredo também aborda os “princípios” da submissão feminina, ao ponto da mulher deixar o marido decidir se vai ou não rolar o aborto. Digo “princípios” entre aspas, pois ela nunca é realmente submissa, só em alguns momentos. Francine tem um desenvolvimento árduo na trama, convivendo com o sexo oposto para fugir dos caos, ela tem seus momentos de superação e respeito, sem contar a trajetória triste e lamentável que acaba sofrendo no final do filme. Apesar de eu amar Dia dos Mortos (1985), gostaria que tivéssemos tido a presença desses personagens em um algum momento, principalmente do Peter interpretado por Ken Foree, cheio de presença e ótimas cenas carismáticas. Para certas pessoas, aborto e submissão feminina podem parecer um absurdo, mas o mundo diante de uma catástrofe requer atitudes drásticas, hipoteticamente falando, é claro.

Alguns elementos da mitologia envolvendo os zumbis foram mantidos, como Romero mostrando uma estratégia para afugentar os zumbis: fogo, algo que já havíamos visto em A Noite dos Mortos-Vivos. A trilha sonora principal é muito boa (clique aqui para ouvir), mas algumas músicas acabam saindo da premissa proposta. Mesmo com o dobro de violência e gore, esse capítulo é mais descontraído que A Noite dos Mortos-Vivos, muito pela evolução de dez anos na consciência de Romero e estética do cinema.

Roger após ser mordido acidentalmente.

Despertar dos Mortos é extremamente violento o tempo todo. Tiros de escopeta na cabeça são pouco perto do mostrado, temos de tudo, cabeças sendo rasgadas por hélice de helicóptero, marteladas, machadadas, chaves de fenda cravadas na fonte, suicídio, crianças fuziladas, canibalismo literalmente explícito e detalhado... A maquiagem é um espetáculo grotesco de canibalismo e sangue vermelho forte, típico dos filmes da década de setenta. Tom Savini prova seu talento em cada ferimento perfeito que consegue recriar, o que também mais agrada é o nível explicito da violência, com situações que realmente são impactantes, principalmente nos últimos 40 minutos de filme, quando um grupo de motoqueiros resolve invadir o shopping para saquear o local. O grupo é liderado por ninguém menos que o próprio Savini, que faz uma verdadeira bagunça pelos corredores cheios de zumbis, aniquilando as criaturas como forma de brincadeira e deboche, até mesmo provocando uma “guerra de tortas” com seus amigos arruaceiros e badboys.

Quando os motoqueiros conseguem invadir o shopping, a mensagem de Romero fica mais evidente ainda, ao acompanharmos os homens roubando basicamente tudo, até mesmo imobilizando uma mulher zumbi para levar as joias e anéis que ela usava. O pior de tudo, é que eles brincam e zoam os zumbis com deboche, chegando ao ponto de arremessarem tortas neles, aproveitando a desgraça generalizada para curtir bons momentos. Os desgraçados tem até uma buzina da cavalaria para tirar onda! A cena em que Savini aplica uma “voadora” no zumbi e crava um facão em sua cabeça é lendária, inclusive acabou virando a capa do VHS lançado aqui pela Castle.

Tom Savini é o mestre!

Como acontece sempre nos filmes de Romero, dois sobreviventes acabam sendo mordidos em duas ótimas cenas, primeiro o policial afobado Roger, que faz Peter prometer matá-lo assim que começar a se transformar em zumbi. O outro personagem contaminado é Stephen, já no final do filme, ao ser cercado por um grupo de zumbis no elevador. O drama atinge seu auge no último ato, mostrando que a tragédia só estava começando na humanidade. Quando acompanhamos o “amanhecer” dos mortos na última cena, entendemos perfeitamente o instinto frio que precisa se apoderar das consciências sobreviventes, o apocalipse zumbi não era apenas uma fase controlada, mas sim o verdadeiro fim de uma raça. Dia dos Mortos (1985), o próximo capítulo, deixa tudo isso ainda mais evidente com várias inovações na mitologia dos mortos. São, talvez, os melhores filmes de zumbi já feitos no mundo, e continuam firmes nesse quesito.

É interessante ver que, no final, os vilões não foram necessariamente zumbis, mas sim o próprio ser humano, obcecado pelas oportunidades criminosas que assolaram um planeta caótico. Com a liberdade criminosa, vem a violência contra tudo e todos, incluindo a própria raça sobrevivente, lutando para não ser extinta. No próximo filme esse assunto chega ao seu auge, com intrigas cabulosas por parte dos humanos restantes. A sociedade representada por Romero é o verdadeiro prazer de seus filmes, independente da violência extrema que agrada tanto os fãs.

Em 2004 tivemos um remake que no nosso território nacional ficou conhecido como Madrugada dos Mortos (inclusive, toda a primeira trilogia de Romero foram refilmadas com o passar das décadas). Entretanto, o Despertar dos Mortos original continua mais fiel em sua mensagem social importante, tendo grande valor até os dias atuais. Depois dessa, Romero já havia conseguido provar seu verdadeiro charme sangrento, e estabelecer outro ponto de referencia na cultura popular que atualmente adora “sobreviver” dos zumbis.
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TRAILER DE 1968:
CURIOSIDADES:
1) As duas crianças zumbis que atacam Peter na cena do aeroporto são na verdade sobrinhos de Tom Savini. Eles são os únicos zumbis que correram nos filmes de Romero.

2) A cena em que Roger e Peter estão no caminhão e começam a brincar sobre suas alturas foi totalmente improvisada pelos dois atores.

3) Gaylen Ross (a Francine) se recusou a gritar durante o filme. Ela sentiu que Francine era uma personagem forte, e que se gritasse, essa ideia seria perdida. Ela falou isso para Romero uma vez, quando o diretor pediu que ela gritasse. Ele nunca mais pediu novamente.

4) Os inúmeros figurantes contratados ganharam $20 dólares, uma caixa com refeição e uma camisa de Despertar dos Mortos.

5) Gravado em um shopping Center de verdade (Monroeville Mall) durante o inverno de 1977/1978. Era um dos maiores shoppings dos EUA na época, hoje é razoavelmente pequeno perto de outros.

6) Alguns dos atores que interpretavam os zumbis costumavam encher a cara no bar chamado Brown Derby, que era localizado dentro do shopping. Uma noite, eles roubaram um carrinho de golfe e bateram em um pilar, provocando um acidente e causando um prejuízo de $7.000 dólares para a produção KKKKKKKK.


7) Alguns membros do elenco ficaram doentes fisicamente e completamente enjoados pelo grau das maquiagens. Reza a lenda que Tom Savini usou um mesmo manequim durante o filme todo, nesse tempo, foi explodido, queimado, atingido por tiros e espancado, entre outras coisas.


8) A respeito do sangue falso, Savini estava incomodado com a forma que a mistura era produzida pela 3M: na fotografia parecia fluorescente. O diretor Romero achou que aquilo era perfeito, pois entregava um charme cartunesco no filme, parecido com quadrinhos.


9) Peter é a primeira pessoa na franquia que usa o termo "zumbi" para se referir as pessoas mortas que voltaram a vida. O termo havia sido usado somente uma discreta vez no rádio em A Noite dos Mortos-Vivos (1968), por um repórter.

10) As pessoas ainda visitam o shopping Monroeville somente para ver o local onde Despertar dos Mortos foi gravado. Virou uma espécie de ponto turístico para os fãs.

11) Demorava em torno de 3 horas para aplicar a maquiagem de cada zumbi... Bela disposição, hein Savini!

CONTAGEM DE CORPOS (175 mortes, 147 zumbis e 28 humanos):
Stephen (15 baixas):
13 zumbis derrubados.
2 humanos motociclistas.
Peter (48 baixas):
40 zumbis derrubados.
6 humanos motociclistas.
Roger (após transformação).
Stephen (após transformação).
Roger (34 baixas):
34 zumbis derrubados.
Francine (4 baixas):
4 zumbis derrubados.
Blades / Tom Savini (3 baixas):
3 zumbis derrubados.
Equipe da SWAT (13 baixas):
3 zumbis derrubados.
10 humanos assassinados em tiroteio.
Guerillas (2 baixas):
2 policiais assassinados.
Rednecks (8 baixas):
8 zumbis derrubados.
Exército (2 baixas):
2 zumbis derrubados.
Gangue de motocicleta (41 baixas):
41 zumbis derrubados e despedaçados.
Zumbis (7 baixas):
1 tenente e 6 motociclistas.

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